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Encontrar a causa raiz pode resolver meu problema de compulsão alimentar?

Uma pergunta que recebo muito nas redes sociais, e-mail e WhatsApp é sobre encontrar o real problema, o que faz com que eu tenha compulsão alimentar. Isso geralmente é feito através de processos de regressão à causa (seja por emoção ou não), em processos de hipnoterapia, ou mesmo de forma conversacional durante as psicoterapias mais tradicionais, independente da abordagem utilizada. A grande pergunta é: se eu achar lá atrás aquilo que me fez entrar nesse processo compulsivo, consigo "desligar" a necessidade desse comportamento em mim e "resolver" ou "acabar" de vez com esse problema?



Buscando a solução fácil e rápida

É isso que prometem diversos tratamentos oferecidos por aí. Inclusive, a crença na "resolução" rápida do problema alimenta a indústria da cirurgia bariátrica também, e outras obscenidades como mecanismos para que a pessoa obesa não consiga abrir a boca para comer alimentos sólidos, redes que são colocadas na língua e não permitem a alimentação normal, entre outros absurdos. Afinal, se eu "fechar" a boca, estômago, intestino do gordo, ele para de comer. Essa abordagem resolutiva está alinhada com o discurso de que o gordo é um problema a ser resolvido e precisa ser resolvido, quer por amputação (como na cirurgia bariátrica), quer por encontrar a causa raiz, ou outras formas mais agressivas como as mencionadas.

Como a compulsão alimentar começa

Quem sofre do comer compulsivo, como mencionei nesse artigo aqui, teve sim alguma situação estressora ou dieta restritiva que disparou o comportamento compulsivo. Sempre tem a primeira vez que ele acontece, e parece surreal. Na primeira vez que a pessoa tem uma crise de compulsão alimentar, a sensação é de algo sobrenatural, descontrolado e pontual. Parece um grande deslize, uma grande compensação emocional, parece efetivamente algo que não vai se repetir no futuro.

Imagina! Eu me comportar dessa forma novamente. Claro que não! Não sou maluca! Quem não consegue controlar a própria boca???

Mas, depois da primeira crise, surpreendentemente ela começa a se repetir com alguma frequência. Em geral, de forma mais espaçada no começo, e tende a ter sua frequência aumentada. Ainda assim, parece algo que vai, em algum momento, parar. Não faz sentido nenhum, deve ser uma fase. Só que não para, se instala, e se torna um pesadelo. Cada tentativa de sair do processo compulsivo só piora a frequência e a violência das crises. E daí pra frente pode se estabelecer uma rotina de compulsão alimentar, ou pode ser esporádico, aumentando a frequência quando determinadas situações ambientais, familiares ou emocionais se fazem presentes.

O caso de Joana

Vamos trabalhar aqui um caso fictício para ilustrar melhor o mecanismo do processo de compulsão.


Joana é uma menina que tem uma família italiana que adora se reunir envolta da mesa. Seus avós, tios, tias e pais são pessoas grandes, e gostam de ver a mesa sempre farta. Joana não tem realmente uma questão alimentar, se sente bem e confortável consigo mesma nos seus 14 anos, é alegre e faladeira. Nesse ano, ela se interessou por um menino e falou para suas amigas. Elas recomendaram que a Joana perdesse uns 2 quilinhos, usasse algumas roupas mais justas, arrumasse melhor o cabelo e passasse um pouco de maquiagem - tudo na tentativa de chamar a atenção do garoto na escola. Entretanto, esses comentários fizeram com que Joana, pela primeira vez, se olhasse no espelho de forma crítica, se sentindo inadequada. Joana decidiu então começar uma dieta saudável pra perder um pouco de peso e se sentir mais bonita.

Após os primeiros 5 dias de dieta (que começou firme na segunda-feira, como manda a tradição), Joana teve um almoço de família no Sábado. Ela tinha aguentado firme a semana toda, e mesmo com fome nos intervalos entre uma refeição e outra, ela se manteve focada na dieta e no seu objetivo, se pesando todos os dias para acompanhamento do peso. Quando Joana sentou-se à mesa, o cheiro da comida, a oferta dos seus pratos preferidos, e a restrição que passou durante toda a semana a impulsionaram a comer uma quantidade muito maior do que comeria normalmente, além de ter comido muito rápido. "Por que você está tão esganada, menina? Desse jeito vai ficar gordinha que nem a gente!", foi o comentário de sua tia. Esse comentário disparou em Joana uma sensação de fracasso - por ter cedido às tentações e saído da sua dieta, desespero - por não estar chegando mais próximo de conquistar o coração do seu crush, e vontade de não comer nunca mais. Resolveu compensar pelo resto daquele dia. Se ela não comesse mais nada a tarde e a noite, o estrago não seria tão grande, certo?

Mas naquela mesma noite, Joana sentia fome, infelicidade e seus sentimentos estavam difíceis de compreender. Ela passou pela cozinha rapidamente, foi para a despensa, e, antes que ela percebesse, pegou um pacote de bolacha wafer e foi pro quarto. Comeu o pacote todo, saiu do quarto, buscou mais uma coisa, depois outra, depois outra. Comia escondido, trancada aqui ou ali, sem conseguir parar, acabando com tudo o que começava a comer. Perdeu a noção, as contas, o tempo. Em algum momento, muitos minutos mais tarde, percebeu que passava mal, e foi deitar, chorando. Não entendia o que tinha acontecido, se culpava, sentia uma angústia profunda, mas decidiu firmemente retomar a dieta no dia seguinte. Que era domingo, e nada saiu como ela tinha planejado.

Foi assim que Joana começou sua compulsão alimentar. Entre períodos de menor e maior frequência, hoje ela tem 24 anos e pesa 115kg. Gostaria de perder peso e busca terapia como sua ultima opção antes de partir para a cirurgia bariátrica.

Procura da causa raiz

No caso de Joana, imagine que possamos voltar no tempo e que pra ela fique claro que ela começou a ter compulsão alimentar porque queria se sentir mais bonita e conquistar seu crush na escola. Com certeza, 10 anos depois, ela mal se lembra do nome do garoto, tem problemas da vida adulta e não decide seguir conselhos de suas amiguinhas da escola. Dessa forma, a compulsão alimentar pode até ter começado por esses motivos - esses fatores precipitantes - mas não é isso que mantém a compulsão alimentar operante (os fatores precipitantes não são os fatores mantenedores). Voltar na causa raiz não desarma todo o mecanismo da compulsão alimentar, assim como entender porque alguém começou a fumar aos 12 anos não faz com que aos 50 anos essa pessoa interrompa o hábito de fumar. Da mesma forma, a pessoa não para de fumar quando se joga todas suas carteiras de cigarro fora, ou se esconde seu cartão de crédito, ou se costura a boca dela pra ela não poder colocar um cigarro na boca. Por que achamos que isso funcionaria no caso de um comportamento compulsivo, que é ainda mais complexo que o ato de fumar?

Entendendo o mecanismo comportamental

  1. A compulsão alimentar é um comportamento em que houve generalização, ou seja, cujas gatilhos foram se ampliando e se estendendo de forma que não podemos mais saber qual é o gatilho que dispara o comportamento.

  2. A compulsão alimentar é um comportamento automatizado. Dessa forma, força de vontade, determinação, culpa, remorso, nada disso irá impedir o comportamento de se realizar, uma vez que ele é automático. Quanto maior a carga de autocrítica, autojulgamento e auto cobrança, maiores são as possibilidades do comportamento compulsivo se manifestar.

  3. Os motivos que levaram a compulsão alimentar a se instalar inicialmente não são os mesmos que mantém ela funcionando ainda hoje. Buscar a causa raiz pode ter um efeito de expectativa e sugestão por uma ou duas semanas, favorecendo a impressão de que você "se sente diferente", mas no longo prazo tende a ser inócuo e mais uma fonte de frustração para quem buscava tratamento definitivo.

  4. Quem tem compulsão alimentar não deve se submeter à cirurgia bariátrica antes de realizar um tratamento psicoterapêutico abrangente para tratamento das questões alimentares. Por isso é mandatório um laudo de um psicólogo para que a cirurgia possa ser feita. Infelizmente poucos são os profissionais habilitados a reconhecer e atestar a condição do seu cliente sob a ótica do transtorno alimentar, e muitos estão passando pela cirurgia para depois terem transtornos alimentares ainda mais graves, condições físicas ainda mais críticas e aspectos psicológicos ainda mais complexos de serem tratados do que antes, ganhando novamente o peso perdido na cirurgia.

Minha intenção com esse artigo não é, em absoluto, tirar sua esperança de conseguir um tratamento efetivo que te permita sair da compulsão alimentar. Ela é tratável, você pode se recuperar totalmente, e alcançar uma vida mais feliz, saudável e equilibrada. Minha intenção é alertar para que você fuja de tratamentos que ofereçam uma resolução rápida para uma questão que é mais complexa do que pode parecer à primeira vista. Busque tratamento psicoterapêutico especializado.

Referências interessantes:




1 Comment


Arlete Rodrigues
Arlete Rodrigues
Jan 05, 2023

Conheci seus textos agora , e ele são maravilhosos. Agora consigo entender meus sentimentos, consigo entender meus comportamentos, consigo entender porque fracasso tanto nas minhas tentativas de emagrecimento

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